sexta-feira, 7 de outubro de 2016

As vidas que não enxergamos

Terminamos a última cirurgia do dia hoje, uma cirurgia de urgência... como de praxe fui conversar com o familiar presente, para passar o quadro do paciente...
Me deparei com um senhor negro, pouco idoso, de aparência bem simples... que imediatamente me fez lembrar meu pai, meus tios... também negros!

- Ola, meu nome é Gabriel, sou da equipe de Neurocirurgia, acabamos de operar o Sr. xxxxxxxxxx... seu familiar não é?
- Ola doutor... Sim, meu irmão... como ele está?
- Olha, o caso é grave, muito grave, a hemorragia pegou uma área muito delicada do cérebro... a cirurgia que fizemos foi uma tentativa, mas não garante que possa sobreviver...
(Um suspiro... uma pausa... os olhos umedecem...)
- É... duro né doutor! Esse vai ser o terceiro... já perdi mais dois irmãos, um de infarte... outro de derrame também...

(enquanto isso, me lembrava que também perdi tios, meu pai perdeu irmãos, de infarto e câncer... além de um cunhado, quase irmão, também de AVC, todos relativamente jovens... todos negros como ele...)

- Era um homem alegre sabe doutor? Ativo... mas as coisas acontecem né?
- Ele era hipertenso e já tinha outros avcs não é mesmo sr?
- Era sim doutor, já tinha um lado meio esquecido... e a pressão alta, tomava os remédios... não sei se sempre certo, mas tomava...
- Fazia o controle da pressão regularmente sr?
- Fazia não doutor...
- E fumava também não é sr?
- Sim doutor... fumava!

(enquanto ele falava, me passou um filminho na cabeça, da época que trabalhei no PSF, do quanto era difícil tentar manter um controle rigoroso dos pacientes hipertensos e de como justamente esses são os que mais precisam desse "desgaste" a mais... e poxa, como a maior parte do povo pobre fica descoberta de uma boa atenção preventiva, pois afinal as condições são desanimadoras para qualquer médico com perspectivas... e também de como a maior parte desse povo... é preto!
Esse povo é como criança e precisam de alguém que os olhem como pai, e olha, vou dizer... isso é realmente difícil, muito difícil! Muitas vezes não somos capazes de dar conta...)

- O senhor tem quantos anos sr xxxxxx?
- Tenho 72 doutor... e ele tinha 68...
- O sr também é hipertenso?
- Sim... também fumo, jogo meu snooke, como minha feijoada, minha pururuca e também tomo minha cervejinha...
(com aquela cara de quem sabe que apronta arte, enquanto me passava a cena desse senhor sendo feliz fazendo suas coisas, talvez junto do irmão mais novo!)

Então meus devaneios, que sempre me passam nesses momentos, seguiam em plano de fundo, enquanto o ouvia:

Mais importante do que o tempo de vida, é a vida em si sabem? E esses momentos de felicidade são tudo de mais especial... é tudo o que vale a pena da vida!
Valiosos demais para serem interrompidos precocemente...

Vou até mais alem... Se o indivíduo chega embriagado ao PS, se tem todo o estereótipo de etilista (alcoólatra), que diferença faz? Todos temos nossos vícios, questionáveis, e cada um leva o peso, sempre sofrível da vida, independentemente da conta bancaria ou local de habitação, e claro também mais sofrível pra uns que para outros... Aliás muitas pessoas admiráveis e admiradas tinham/tem seus vícios... Alguns bem questionáveis!
O dia que bebermos a mais numa festa, que nos excedermos por algum motivo, e todos nos excedemos pois somos humanos, vamos todos querer alguém olhando por nós, como um irmão, caso o pior aconteça!
Aliás nos excedemos muitas vezes em momentos em que estamos muito felizes... ou muito tristes!
Se a pessoa é questionável, quem é que sabe seus motivos?
Já pararam pra pensar em quantas vidas podem estar por trás de uma vida, quanto amor, quantas histórias, quanto potencial, quantos feitos?
Toda vida é preciosa!
E a verdade, a grande verdade, é que as vezes fazemos merdas para sermos felizes... (mas isso é assunto pra um outro post)

Enfim prossegui minha conversa...
- Então se cuide sr... controle essa pressão direitinho, para não acabar que nem ele! Pressão alta mata! Tem que ir medir todo dia e ser chato com ela... de vez em quando tem que medir 3 vezes por dia por uma semana toda pra ver se ta ficando boa mesmo sabe? Senão voltar no médico do posto pra ajustar os remédios... senão da avc e infarto sr....
- É verdade, vou me cuidar....
- Antes deles, também perdi meu pai de AVC sabe doutor...

*Também perdi meu avô paterno de AVC, não cheguei a conhecê-lo... mas gostaria muito de ter conhecido! Morreu quando meu pai tinha apenas 12 anos... e isso me deixa muito triste! Meu pai perder seu pai criança ainda, perder irmãos... (como deve ser doloroso perder um irmão!)
Todos pretos, como o senhor que conversei... e isso sempre me sensibiliza um pouco mais, pois me lembro desses meus familiares e de como deve ter doido pro meu pai e toda a família tudo isso... se doeu e as vezes ainda dói em mim...

O povo pobre, sempre muito simplório, se vê obrigado a acreditar em um sistema falido... que não da condições para que nós médicos façamos a coisa da forma mais correta!
Costumam acreditar no que o doutor lhes diz, e muitas vezes o doutor não presta atenção a devida importância que têm, ou não suporta TER QUE TER essa responsabilidade... ou mesmo simplesmente não liga! Outras vezes não sabe o que deveria saber e fala bobagens, tomadas a peso inestimável pelo paciente pobre e simplório, que na maior parte das vezes é preto, por uma série de questões que não vem ao caso discutir, são várias...
Mas como sofrem... Como precisam de cuidado...

Não.. não são apenas os pretos que sofrem...
Mas a cada vez que olho nos olhos de um paciente ou familiar preto... imediatamente me lembro de que sei o quanto foram e são negligenciados uma vida toda de como sem dúvidas sofrem mais...

Um tio meu faleceu de infarto, que pensaram ser uma "gastrite" de cachaceiro, ele era um sujeito incrível e inteligentíssimo, e de fato era alcoólatra... mas como era feliz!
Um outro tio, de câncer, esperando a melhora do tratamento do SUS... sujeito de coração de ouro! Sem ele, um primo meu sofreu muito e hoje, talvez seus vícios estejam ligados a essa eterna lacuna, como o julgar?
O outro de AVC, sob circunstâncias as quais hoje, um neurocirurgião em formação, me questiono se não possa ter sido também vítima de negligência... Posso dizer que era um homem a frente de seu tempo... mas talvez naquela sala de emergência, sem poder se comunicar... ele tenha sido apenas mais um... quem é que sabe?
Todos esses eram pretos...

Como nosso povo preto sofre...


* Originalmente escrito em 4 de abril de 2016

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